Você sabia? Estreia da Honda nas corridas de motos foi no Brasil

Com o modelo R125, a Honda saiu do Japão pela primeira vez para disputar a prova em comemoração ao IV Centenário de São Paulo em Interlagos

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A primeira competição internacional da Honda foi no Brasil, em 1954 (Honda | Divulgação)
Por Teo Mascarenhas
Publicado em 03/06/2020 às 09h40
Atualizado em 03/06/2020 às 10h03

Pode parecer estranho que uma marca de motocicletas recém fundada decidisse participar de sua primeira competição internacional exatamente do outro lado do mundo, em vez de se inscrever em disputas não tão distantes e dispendiosas.

Contrariando a lógica, a japonesa Honda desembarcou no Brasil em 1954 para disputar no autódromo de Interlagos, sua primeira corrida de motos fora do Japão, em um festival de velocidade em comemoração ao IV Centenário da cidade de São Paulo.

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As dificuldades de uma fábrica ainda embrionária, da enorme distância, do idioma e de recursos, representaram um elevado preço e sacrifício, mas não foram esquecidas.

O modelo R125, a primeira das motos de competição da Honda a acelerar internacionalmente, está eternizada em sua história no espetacular museu da marca, no complexo do autódromo Twin Ring Motegi, no Japão.

antigas motos honda de corrida

Hoje, a marca instituída em 24 de setembro de 1948 por Soichiro Honda é a maior produtora de motos do planeta, ultrapassando 400 milhões de unidades fabricadas acumuladamente até 2019, com 35 plantas em 21 países de todos os continentes, incluindo o Brasil, que já industrializou mais de 25 milhões de unidades desde 1976.

Soichiro, desde o início, tinha convicção de que as competições nas pistas são a melhor vitrine e o mais eficiente laboratório para o rápido desenvolvimento e aplicação de novas tecnologias, posteriormente transferidas para seus produtos de rua, além de um lema sempre perseguido e incorporado pelo marketing “vencer no domingo, para vender na segunda”.

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Soichiro Honda, o fundador da marca nipônica

Travessia

A ideia de participar de sua primeira competição internacional partiu de um convite da Federação Paulista de Motociclismo e do Departamento de Esportes do Estado para a Federação Japonesa, com um apetitoso atrativo extra. Parte das despesas dos candidatos selecionados no Japão seria coberta pelos promotores, custeando o transporte.

Porém, havia um grande problema: a moto para a competição, simplesmente ainda não existia. Além disso, as principais marcas, equipes e pilotos do mundo à época confirmaram presença nas provas das categorias 125, 250, 350 e 500 cm³, elevando o nível da disputa para uma “estreante” no exigente traçado da pista de Interlagos.

Já pensando na futura visibilidade mundial que as competições dariam à marca, além do “sonho” de participar e vencer o badalado Tourist Trophy, com 60 km de extensão e 256 curvas entre vilas e montanhas na Ilha de Man, entre a Inglaterra e a Irlanda (que fazia parte do Campeonato Mundial de Motovelocidade), o japonês aceitou o convite assim mesmo.

Dessa forma, o Brasil seria o início do laboratório global de competições internacionais da Honda. Para pilotar a moto que ainda seria fabricada, Soichiro selecionou o funcionário e piloto de testes Mikio Omura, então com 21 anos, que tinha como experiência apenas provas locais na terra, dirt track.

Como engenheiro e mecânico, acompanharia ao outro lado do mundo, Toshiji Baba, recém formado, com 23 anos. Entretanto, surgiria mais um revés.

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Quando confirmaram a participação, o prazo de inscrição havia vencido e os organizadores não mais poderiam bancar todas as despesas de transporte, inviabilizando a viagem. Contudo, a marca de motocicletas Meguro (posteriormente adquirida pela Kawasaki) igualmente convidada, topa ir para o Brasil, dividindo as despesas, para disputar a prova com uma moto 250, pilotada por Katsushiro Toshiro.

Sonho de metal

Em um arranjo de última hora, a organização custeia o transporte de um piloto, que seria reforçado pela premiação de largada, diluindo os custos. Com parte dos problemas resolvidos, a Honda parte para montagem da motocicleta. Sem muito tempo para testes, o modelo escolhido para servir de base para a montagem da moto de competição é um exemplar Dream de série, que tem como significado “Sonho”.

Na linha de produção, a Dream D é a primeira motocicleta Honda, em 1949, com o nome “Sonho”, equipada com motor de um cilindro do tipo dois tempos. Até então, a Honda produzia bicicletas motorizadas. Como Soichiro não apreciava os motores do tipo dois tempos, logo depois veio a Dream E de 1951, com motor do tipo quatro tempos OHV, com 5,5 cv de potência, que foi a escolhida para ser a base.

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Modelo Dream E que serviu de base para a R125

Para competir, entretanto, o quadro estampado dos modelos D e E era pesado e inadequado. A solução foi construir um quadro tubular e adaptar o motor do tipo quatro tempos da Dream E de 150 cm3, reduzido para 125 com leve diminuição do curso do pistão, e se adequar na categoria escolhida para a estréia no estrangeiro.

Desta forma, surgia o inédito modelo batizado de R125, com suspensão dianteira bem rudimentar, com paralelogramos e a traseira simplesmente inexistente, como as “rabo duro” Dream D e E.

Além disso, a posição de pilotagem era mais apropriada para o fora de estrada, herdada das experiências no dirt track das pistas de terra batida do Japão pós-guerra, com guidão mais largo, rodas maiores e piloto mais alto, sem nenhuma carenagem para melhorar a aerodinâmica.

Perrengue

Com orçamento curto e tempo escasso para despachar as motos de navio, a solução foi levar os modelos desmontados como bagagem pessoal no avião. Antes de embarcar em 13 de janeiro de 1954, o conselho de Soichiro Honda para o piloto Omura e o engenheiro Baba foi de não se preocuparem com o resultado, mas em completar a prova “de qualquer maneira, custe o que custar”.

A viagem de Tóquio no Japão a São Paulo no Brasil, com aviões a hélice e muitas escalas e conexões, demoraria longos seis dias. Quando desembarcaram no aeroporto de Congonhas em um voo da Air France, a imprensa e a colônia japonesas estavam à espera, o que de certa forma aumentava a pressão por resultados, apesar da orientação dada antes da partida do outro lado do mundo.

Porém, como analisou a Gazeta Esportiva da época, “a falta de intercâmbio prejudica o progresso do esporte motorizado nipônico”, revelando a cautela dos entrevistados, que, sem saber, começavam a escrever a história.

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Reportagem sobre o desembarque da delegação japonesa

Para não correr o risco de danificar a moto e as poucas peças de reposição incluídas na bagagem e, consequentemente, não cumprir as ordens expressas de Soichiro em terminar a prova, o engenheiro Baba e o piloto Omura, com ajuda da colônia japonesa, conseguiram uma motocicleta inglesa AJS 250 emprestada para treinar e conhecer os oito quilômetros de extensão da pista paulistana.

Pilotagem no antigo autódromo de Interlagos

O autódromo, batizado de Interlagos por estar entre as represas de Billings e Guarapiranga, foi inaugurado há 80 anos, em 12 de maio de 1940, exatamente com uma competição de motos, e localiza-se em uma área de cerca de um milhão de metros quadrados, dentro de uma “bacia” que proporciona uma visão quase completa de todo o traçado.

Com sentido anti-horário, tinha 16 retas e 15 curvas de todos os tipos. De baixa velocidade, de alta, de altíssima, em subidas e descidas, além de uma reta de quase um quilômetro, formando um dos mais espetaculares e desafiadores circuitos do mundo. Em 1989, passou por reformas para se adequar às exigências da Fórmula 1, reduzindo a extensão para 4.325 metros.

Desafio para as motos Honda

Ao rodar na pista de Interlagos com a R125 que levou o numeral 136 para os treinos oficiais (o “R” passaria a ser usado para identificar todas as motos Honda de velocidade), a dupla japonesa sentiu o tamanho da enorme encrenca. No Japão ainda não existiam pistas daquele nível, somente circuitos de terra batida com traçados curtos e pouco técnicos.

Com uma pista tão longa e exigente, cheia de retas e subidas acentuadas pela frente, o motor Honda de cerca de 6 cv projetado para ser robusto e equipar motos de rua e a falta de aerodinâmica faziam enorme diferença frente às máquinas europeias especiais de competição, com requintes de duplo comando de válvulas no motor, quase o triplo da cavalaria e 60% a mais de velocidade final, além de melhor posição do piloto para minimizar a resistência do ar.

Na cronometragem oficial, o pole position Nello Pagani, com uma italiana F.B. Mondial (Fratelli Boselli Mondial), campeão mundial da categoria 125 em 1949, registrava o tempo de 4min41seg, enquanto Mikio Omura com a R125 cravava 6min11seg, andando cautelosamente para não quebrar e ficar fora da prova Um verdadeiro abismo aparentemente intransponível entre os dois. Porém, a situação ainda iria piorar.

O piloto da Meguro 250, Katsushiro Toshiro, sofreu um acidente nos treinos, lesionando o braço esquerdo, e não teria condições de participar da prova, o que também o impediria de receber a premiação de largada (equivalentes a 75 mil Ienes), arruinando o já escasso orçamento da delegação japonesa.

É dada a largada!

No dia da prova, 13 de fevereiro de 1954, um mês depois de embarcar para o Brasil, a meta de Mikio Omura e do engenheiro preparador Toshiji Baba era completar a corrida, cumprindo e honrando a determinação de Soichiro Honda, naquela que seria a primeira participação oficial da marca fora do Japão.

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Retão de Interlagos

A largada foi ao estilo Le Mans, com pilotos de um lado e motos de outro. Com a bandeirada, o ágil Omura, classificado em 15º entre os 25 concorrentes, correu na frente dos demais pilotos para arrancar na dianteira com a “descomplicada” R125, que, se não era a mais potente, pegava fácil. Porém, bastou a grande reta e a lembrança das palavras de Soichiro Honda para ser superado pelas motos mais “complicadas” do grid.

Contudo, no decorrer dos quase 70 km em 30 minutos e 8 voltas, sob forte calor, Omura foi melhorando os tempos, sobretudo no miolo do circuito, com curvas fechadas de baixa velocidade, onde aproveitava a maior agilidade da R125 e sua habilidade em contornar as curvas como nas provas do Japão de dirt track, com os pés no chão, descontando a desvantagem que levava nas retas e subidas.

Missão cumprida

Surpreendentemente, os tempos de volta caíram vertiginosamente, ficando abaixo dos 5min, reduzindo drasticamente o abismo inicial, permitindo a Omura andar no pelotão intermediário, mesmo sem tirar a ordem de Soichiro da cabeça e o ímpeto da mão direita.

Com a bandeirada final, a Honda R125 cruzou em 13º entre as 25 motos inscritas, com uma média horária de 115 km/h. Um resultado extraordinário, levando em consideração o nível dos tradicionais concorrentes europeus dominantes mundialmente e o receio de não completar a prova.

Com a missão cumprida, era hora de voltar para casa na longa jornada de retorno. Entretanto, faltava um detalhe crucial: recursos para custear as passagens.

Omura e Baba então recorreram à Honda, que apesar das restrições fiscais japonesas para remessas, consegue enviar mais 40 mil Ienes, contudo, ainda insuficientes. A colônia japonesa também ajuda com a estadia e alimentação. Porém, a drástica solução foi vender a R125 para completar o orçamento da volta, desfalcado com a perda do prêmio de largada.

Motos Honda iniciaram trajetória de sucesso nas pistas

Chegando ao Japão, trouxeram a centelha para que Soichiro iniciasse o ousado desafio de expandir as competições pelo mundo e vencer a mais famosa prova da época, o TT da Ilha de Man. Assim, logo depois, em 20 de março de 1954, divulgou um comunicado interno, que depois ficaria famoso por nortear em carta aberta os rumos da Honda dali em diante, com ênfase nas competições de motos.

“Desde menino, um dos meus sonhos tem sido competir em corridas com um veículo fabricado por mim, e vencer. Mas, antes disso, tive que assegurar a precisão do meu equipamento, a segurança do negócio. Nesse processo, não encontrei tempo livre para me dedicar às corridas de motocicletas. No entanto, a reportagem sobre a recente corrida internacional de motocicletas em São Paulo me deu informações detalhadas sobre a situação nos países da Europa e América”.

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Modelo RC 166 vencedor do TT da Ilha de Man

Ainda na carta, Soichiro continua analisando o futuro e praticamente decreta. “Não existe Honda sem competições”. De lá para cá a Honda venceu pela primeira vez o TT da Ilha de Man em 1961, concretizando o “sonho” de Soichiro com o piloto Mike Hailwood.

Desde então, foram mais de 300 vitórias só na principal categoria do Mundial de Motovelocidade, iniciada em 1966, no GP da Alemanha, com o piloto Jim Redman, a bordo do modelo RC 181, ainda com motor de 500 cm3.

Atualmente, a empresa nipônica conta com mais de 60 títulos somados em todas as classes e quase 700 vitórias acumuladas, gerenciados pelo HRC (Honda Racing Corporation), poderoso braço criado especificamente para as competições

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RC 166 e NR 500 com revolucionários pistões ovais

Mistério envolve a primeira das motos Honda de corrida

E o destino da R125? Por ser a primeira moto de competição internacional da Honda, adquiriu um valor histórico incalculável. Porém, a moto havia sido vendida em 1954, e o contato com a marca, do outro lado do mundo, perdido. Anos depois, com a Honda já consolidada mundialmente e filial instalada no Brasil, quis resgatar a moto, que faz parte de sua trajetória.

“Ordens vindas do Japão” como dizia o então diretor, Murakami, que tinha ligações com o próprio Soichiro. O rastreamento foi feito sem qualquer divulgação, para não atrapalhar o possível resgate. Tudo sigilosamente, para não levantar suspeitas, como lembra o Ricardo Ghigonetho, então assessor da Honda.

Com apoio da HRB (Honda Research Brasil), Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento de Duas Rodas, foi montada uma comissão para descobrir seu paradeiro. As investigações avançaram até chegar à massa falida de uma ex concessionária, que havia comprado a moto para um de seus mecânicos competir.

Chegaram até a um galpão em Diadema, São Paulo, com muitas peças e materiais do espólio. Porém, sem qualquer resultado. A Honda, então, resolveu reconstruir o modelo. As dificuldades foram muitas, como lembra Wilson Yasuda, um dos pioneiros da marca no Brasil.

Então, baseado em fotos garimpadas, relatos e depoimentos, a moto foi sendo reconstruída peça por peça, exatamente como a pioneira. As fotos do jornal Gazeta Esportiva, que havia registrado o desembarque dos pilotos japoneses e também a cobertura da prova, igualmente serviram de fonte.

Motos históricas estão em museu da Honda

Hoje, a réplica perfeita da R125 pintada em azul (a cor vermelha que caracteriza os modelos da marca seria adotado posteriormente) está no Honda Collection Hall, o museu da marca no complexo do circuito Twin Ring Motegi, inaugurado em 1998, como parte das comemorações de 50 anos da fundação da marca, junto com outros mais de 330 modelos que fizeram história.

O museu também reserva espaço para expor carros e motos importantes de outras marcas, além de contar com biblioteca, café e loja. A visita virtual pode ser feita aqui.

Fotos Honda | Blog Honda | Internet | Divulgação

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1 Comentário
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Coehnn Goldhill 28 de julho de 2021

Excelente matéria, parabéns.

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