Uma Rural Willys doidona morro abaixo; quem segura?

Em mais um de seus "causos", Douglas Mendonça lembra de uma viagem de perua pelas estradas dos cafundós do Paraguai

rural willys alta
Por Douglas Mendonça
Publicado em 02/07/2018 às 20h17

Esse causo aconteceu quando eu ainda era adolescente, lá pelos meus 15 anos de idade, a bordo de uma Rural Willys. Minha irmã Míriam casou-se com meu cunhado Ricardo e foram morar no Paraguai, administrando as vendas das terras que se transformariam na hoje cidade de Corpus Christi, a cerca de 80 km da fronteira do Brasil, perto da cidade de Guaíra, de onde se atravessava de Balsa o rio Paraná até a cidade de Salto de Guairá, já em território paraguaio. Partimos de ônibus para visitá-los: minha irmã e meu cunhado, eu, Douglas Mendonça, meu pai João, minha mãe Maria e meu tio Zé, irmão da minha mãe.

Fomos os quatro de ônibus de São Paulo até Londrina no Paraná. De lá, pegamos uma condução, que eu não sei se merece o titulo de ônibus, pela precariedade da condução, que serpenteava estradas de sítios e fazendas do interior do Paraná, até a cidade de Guaíra, onde meu cunhado e minha irmã nos esperavam para irmos todos juntos ao que eles chamavam, na época, de acampamento, e que no futuro se transformaria na cidade Paraguaia de Corpus Christi. Depois de quase um dia e meio dentro desse improvisado ônibus, com direito a atoleiros e quebras, chegamos a Guaíra, ainda em território brasileiro.

Quando todos pensamos que a epopeia já havia acabado, fomos apresentados pelo meu cunhado e minha irmã à velha perua Rural Willys que eles utilizavam como condução. Atravessaríamos o rio Paraná e viajaríamos no território paraguaio até o nosso destino. Apesar de aparentemente em bom estado de conservação, a Rural era uma perua de sítio que não sabia sequer o que era rodar no asfalto. Mesmo sendo do ano de 1964, então com apenas 5 anos de uso (esses fatos ocorreram em 1969), a Rural sentia em sua mecânica o castigo das condições que rodava e a mais absoluta falta de manutenção, que naquele fim de mundo não existia.

Meu tio Zé sempre um foi um exímio motorista. Orgulhava-se de ter pertencido ao corpo de bombeiros, à Força Pública e à Polícia Militar, de onde se aposentou como tenente. Mas falava com mais orgulho do período de sua vida onde foi motorista de ônibus da Cometa, que na época escolhia os profissionais que conduziam seus coletivos de maneira muito rígida. Só os melhores dirigiam os Cometa. E meu tio Zé estava entre eles. Claro que ele não perderia a oportunidade de dirigir a velha Rural em território Paraguaio. E meu cunhado Ricardo não lhe negou essa gentileza.

Uma Rural Willys doidona morro abaixo

Estávamos em seis pessoas no interior da velha Rural, e o meu tio Zé no volante. Atravessamos de balsa o Rio Paraná até Salto de Guairá. Na frente íamos o meu tio Zé dirigindo, eu sentado no meio do banco interiço e o meu cunhado do lado direito. No banco traseiro, meu pai, minha mãe e minha irmã, e nossas tralhas todas no bom bagageiro da boa perua. Da cidade Paraguaia, pegamos uma estrada batizada de Ruta Internacional, rodovia que ligava Salto de Guairá até Assunção, a capital do país vizinho. Seria uma viagem relativamente rápida, de não mais que uma hora e meia.

Apesar de ser uma estrada extremamente larga, o piso era de terra batida, e os carros que nela trafegavam utilizavam só o meio da pista. O restante era todo esburacado e difícil de trafegar. As conversas e risadas eram muitas, contando as agruras de se chegar até lá. Em um trecho da estrada havia uma longa descida, relativamente íngreme. O velocímetro da velha perua ficava bem na minha frente e eu fui vendo os números crescendo de 6, que representava 60 km/h, para 8, que indicava 80 km/h, uma velocidade relativamente alta para uma estrada de terra. Foi nesse momento que o meu cunhado disse ao meu tio: “ tio, diminui a velocidade porque no fim dessa descida tem um mata burro e uma curva fechada a direita”. Para quem não sabe, mata burro é uma daquelas pontes feitas no interior, que têm uma tábua espaçada da outra, cujo objetivo é impedor que animais passem por elas.

Meu tio, no maior silêncio, não diminuía a velocidade. E eu, no meio, ouvi o outro apelo do meu cunhado:” Tio, diminui senão não fazemos a curva a direita”. Foi nesse momento que meu tio, com olhar meio assustado e um tom mais grave na voz, foi logo dizendo: “ Diminuir como, já estou com o pé no freio desde o início da descida, e a velocidade só aumenta ao invés de diminuir”. Nesse momento já estávamos passando pelo tal mata burro a uns 70 km/h; meu tio tentou fazer a curva a direita e a Rural se inclinou com pinta de quem ia capotar, e ele, malandramente, endireitou o volante e nós fomos reto rumo a uma plantação de mandioca. A Rural pulou um pequeno barranco e adentrou no mandiocal. O barulho da derrubada dos pés de mandioca era ensurdecedor, até que paramos.

Meu cunhado se virou para trás, perguntou se todos estavam bem e, graças a Deus, estávamos todos sem nenhum arranhão. A resistente Rural abriu uma trilha de uns 50 metros na plantação. Meu tio ligou novamente o motor que havia parado, mas não conseguia engatar a marcha ré para que voltássemos a estrada de onde tínhamos vindo. Como a Rural tinha a alavanca do cambio embaixo do volante, os varrões que conectavam a alavanca ao cambio estavam repletos dos ramos da mandioca, que impediam os engates das marchas. Meu tio abriu o capô e meu cunhado foi arrancando os pés de mandioca de dentro do cofre do motor, até que, uma hora, conseguiu engatar as marchas. Demos marcha-a-ré naquela mesma trilha que a Rural havia aberto e chegamos novamente à estrada. Ficou engraçado: Os pés de mandioca tinham de 1,8 a 2,0 metros de altura e ficou uma longa trilha que ia longe, dentro desse mandiocal. Certamente, o dono da plantação deve ter ficado bem bravo quando descobriu aquela verdadeira estrada dentro de sua plantação. E com razão.

Só para sabermos como a falta de comunicação, às vezes, pode levar a situações difíceis. Meu tio dirigiu a Rural, antes do ocorrido, apenas em baixas velocidades, na cidade, e não se deu conta que o carro não tinha freios. Meu cunhado, por sua vez, nunca disse ao meu tio para que tomasse cuidado, pois o carro não tinha freios. Segundo ele, como o carro só trafegava em estradas de sítio e em baixa velocidades, ele praticamente não utilizava o freio e não ligava para o fato da Rural não os possuir. E a Rural, por uma falha de projeto, possuía o cilindro mestre do freio e o reservatório de fluído ao lado do coletor de escapamento, e todo o calor que irradiava dessa peça fazia evaporar o fluido do sistema hidráulico.

Para quem possui ou possuiu Jeep, Rural ou a picape dessa perua, sabe que pelo menos uma vez por mês, o reservatório de fluido de freio deve ser verificado e preenchido quando necessário. Vocês acham que no cafundó do interior do Paraguai alguém vai ficar verificando se tem fluido no sistema ou se é preciso completá-lo? Claro que não… Mas para evitar o contratempo que tivemos, correndo até risco de um acidente grave, bastava que o meu tio tivesse verificado atentamente o carro antes de dirigir ou que meu cunhado o tivesse alertado sobre a insuficiência dos freios. Nenhum, nem outro, e deu no que deu…

Foto Willys | Divulgação

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5 Comentários
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Celina 3 de julho de 2018

Éprimoo lembra qdo VC estava de carta nova c/ seu padrinho meu pai, dirigindo o seu aerowillis entre Caragua e São Sebastião qdo era reta VC dirigia devagar ,qdo chegava as curvas VC calcava o pé, ai meu pai te deu uma bronca e falou ate. Palavroes, já naquele tempo

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Silvio Cusato 3 de julho de 2018

Gordo, suas aventuras automobilísticas começaram cedo, né? ?????

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Teresa Oliveira 3 de julho de 2018

Adoro essas histórias!

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Cícero lima 3 de julho de 2018

Boua Douglas, imagino a sensação naquele monte de aço sem qualquer aparato de segurança.

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Helio Silva 2 de julho de 2018

Ótimo causo…Tio Zé com muita habilidade evitou um capotamento no internacional…

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